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Das favelas para o feed: pesquisa analisa o impacto político de artistas periféricos


No Dia Nacional do Funk, celebrado nesta semana (12 de julho), os debates sobre o impacto sociopolítico e os estigmas em torno das músicas ganham ainda mais força. Para além do ritmo e letra, o funk e outros gêneros musicais que nasceram nas periferias também dialogam com movimentos sociais e ativismo no país, especialmente nas redes sociais cheias de fãs, haters e a grande mídia. 

Esse fenômeno é analisado a fundo pela professora do Departamento de Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Simone Pereira de Sá, autora da pesquisa em desenvolvimento Música pop-periférica: política, ativismo e controvérsias nas plataformas digitais, realizada no Laboratório de Pesquisa em Música, Culturas Urbanas e Tecnologias (LabCult-UFF), coordenado pela pesquisadora no Programa de Pós-graduação em Comunicação (PPGCom-UFF) e financiada com bolsa de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Para a docente, a percepção dos sentidos do que é político se ampliou ao longo das últimas décadas. “A noção sobre o termo já ultrapassou a política institucional ou as pautas de apoiar ou não tais candidatos. A dimensão agora é sobre políticas de gênero, políticas de identidades, políticas feministas e outras”. O que o estudo pretende entender é como tais performances e manifestações refletem e afetam o público. “Ainda são questões para as quais não temos respostas. Porém, nesse momento, podemos dizer com certeza que esses artistas trazem destaque para muitas pautas”. É diante dessa concepção que podemos compreender como os sons e artistas da periferia ocupam os espaços de ativismo no Brasil hoje.

O estudo analisa o ativismo on-line desses artistas a partir da investigação de três conjuntos de problemas. Primeiro, é feita a identificação e discussão sobre os termos relacionados a política, ativismo e mensagens das músicas pop-periféricas e como isso se torna concreto com as performances artísticas. Em seguida, surge a análise das tensões entre artistas e fãs referentes ao apoio de pautas mais ou menos polêmicas. Por fim, o estudo também investiga a eficácia das performances políticas e as influências que elas carregam. As canções, videoclipes, álbuns e shows são objetos de análise da pesquisa, bem como as conexões políticas dos artistas expressadas em postagens nas redes sociais, entrevistas e mais.

Valores, ativismo e redes sociais: o que é a música pop-periférica?

A música pop-periférica abrange mais do que estilos como funk, rap ou trap. “Esse termo se refere a gêneros musicais que surgem nas periferias das grandes cidades brasileiras e aponta para as tensões e estigmas que eles sofrem por exibirem os valores e a estética de seus territórios de origem”, explica Pereira de Sá. Ao pensar nesses gêneros, são remetidos também os valores que vêm das periferias brasileiras ou sobre elas. “Escutamos muitos comentários sobre funk, dizendo que não é música, que não tem qualidade. Essas falas carregam um conjunto de valores em torno de determinadas expressões musicais que são vistas como inferiores”, indica a pesquisadora. 

A partir da última década, esses gêneros se beneficiaram da cultura digital, que foi fundamental para que eles ganhassem mais visibilidade além dos locais de origem. Os funks, por exemplo, não tinham o mesmo alcance de hoje, mas o ritmo cruzou fronteiras estaduais impulsionado pelo poder da internet e, consequentemente, criou novas vertentes. “Quando eu comecei a observar esse fenômeno, no fim da primeira década do século 21, os meninos das favelas cariocas gravavam batalhas de passinho ao som de funks e publicavam nas redes sociais. A partir disso, garotos de periferias em outros estados se identificavam e articulavam as próprias práticas do funk”, explica. 

A docente usa como exemplo o surgimento do brega funk, um gênero popular em Recife desde 2010, para explicar a maneira que as músicas pop-periféricas se beneficiam dos ambientes digitais e o alcance permitido por eles. “O que é o Brega Funk? É o Brega de Recife se articulando com Funk. O pessoal de um ritmo se interessou por outro através da internet”.

À medida que a música e os artistas pop-periféricos ganham mais visibilidade, nasce a dualidade entre fãs e haters, ou seja, o grupo que idolatra contra outro que ataca – e ambos conversam diretamente com as articulações políticas dos artistas. O artigo Anitta, Spotify e polarização política: análise da controvérsia em torno de Envolver, de autoria de Simone Pereira de Sá, em co-autoria com a professora do departamento de Estudos de Mídia Beatriz Polivanov e doutorandos do PPGCOM, Pauline Saretto e Alekis Moreira, aborda a repercussão de uma música da Anitta nas redes sociais e os resultados revelam muito sobre tais articulações. Enquanto os fãs cobravam um posicionamento político durante a campanha eleitoral de 2018, a cantora adotou uma postura de isenção. Por outro lado, “no último pleito, a partir do momento que declara apoio ao Lula, ela passa a ser fortemente atacada pela direita”.

Dados coletados pela Quaest em 2020 definiram a Anitta como a terceira personalidade mais influente em política no Brasil, atrás apenas do então presidente Jair Bolsonaro e do influenciador Felipe Neto. “Isso tudo mostra como a cultura pop está no centro das discussões políticas na atualidade”, diz a pesquisadora.

Anitta defende demarcação de terras indígenas. Crédito: instagram.com/anitta

A performance artística como dimensão política

Na sua metodologia, Pereira de Sá sugere observar aspectos do ativismo e da política dos artistas não somente nos conteúdos musicais, mas em outros aspectos de sua performance nas redes digitais. “O conceito de performance vai além de se apresentar no palco, mas o que o artista fala, como se posiciona, quem ele responde. A performance é a expressão da persona midiática. Se analisarmos as letras da Anitta, da Pabllo Vittar, da Mc Carol de Niterói, não encontramos uma dimensão política explícita, mas, sim, nas críticas e posicionamentos feitos por elas”.

Segundo a docente, os apoiadores políticos se definem atualmente pelas posições de crenças e valores, logo, os artistas periféricos não podem ficar alheios à discussão. A cobrança de posicionamentos é um reflexo da polarização extrema, que surge das chamadas guerras culturais no ambiente digital. 

Uma das linhas teóricas trabalhadas no estudo é a Teoria do Ator-Rede (TAR) proposta por Bruno Latour, a qual analisa atores humanos e (ao invés de ou) não humanos que interferem nas redes coletivas e nas relações sociais. Nesse sentido, o algoritmo surge como um “ator fundamental” que dá margem para várias outras questões dessa guerra, explica a pesquisadora. “A dimensão de visibilidade é mediada pelos algoritmos, então muitas partes da performance política podem ser feitas visando esse objetivo”, elucida Pereira de Sá.

Um conceito central para entender o relacionamento entre artistas periféricos e os fãs é a coerência expressiva. Na série de estudos com Polivanov, as pesquisadoras observam que, ao acompanhar os cantores, os fãs avaliam se o posicionamento atual condiz com a trajetória apresentada anteriormente. Pereira de Sá comenta que “os fandoms (coletivos de fãs) entendem a dupla dimensão de que um artista pode ganhar dinheiro e defender uma causa ao mesmo tempo e não fazem oposição a isso, a não ser que essa causa seja absolutamente alheia ao artista”. Ou seja, se um artista da comunidade LGBTQIAPN+ ganha um cachê para participar de uma Parada de Orgulho LGBT, os fãs não veem problema nisso. Por outro lado, se um artista com atitudes e falas homofóbicas participa do evento, essa coerência é quebrada e colocada à prova pelos fandoms.

Um caso analisado em artigo da pesquisadora em co-autoria com Thiago Alberto é o da performance de Karol Conká, cantora de rap que teve o maior recorde de rejeição em um reality show  quando participou do Big Brother Brasil em 2020. Para a autora da pesquisa, a Karol se tornou sinônimo de cancelamento no país, porque ela provocou uma ruptura da coerência expressiva no momento em que seu comportamento contradisse a trajetória artística. “Ela vem do hip-hop, com discursos de militância e defesa de minorias, mas no programa as atitudes dela não foram condizentes com a sua história”, exemplifica Pereira de Sá. “Por isso o que vale é a performance. São as falas e ações que geram esses questionamentos, não as músicas”.

Karol Conká após a eliminação do programa Big Brother Brasil, em 2021. Foto: Reprodução/Instagram

Essa avaliação feita pelo público se conecta diretamente ao conceito de capital solidário, também explorado na pesquisa em questão. O termo, de acordo com a professora, foi proposto por Bruno Campanella, também professor do Departamento de Estudos de Mídia da UFF, e faz referência à ideia de capital cultural de Pierre Bourdieu, sociólogo francês: “o capital solidário é o que o artista consolida e constrói a partir da participação em causas sociais. Para quem busca sucesso na cena popular brasileira, apoiar as causas sociais ou identitárias é essencial”, explica.

No entanto, ainda que o apoio seja sincero, as ações são acompanhadas de um cálculo de imagem. “Não é só de boas intenções que a cultura pop vive. Como artista, eu sei que se eu fizer falas nessa direção, eu acumulo capital solidário com meus fãs e isso é sempre mensurado. Um artista pode acumular esse capital com um público progressista e perder junto a um público conservador, por isso pensam o tempo inteiro o que realmente vale a pena”, aponta. Para ela, esse jogo não é apenas oportunismo, pois “se o artista defende um valor, é porque ele o compartilha de alguma maneira”.

Se de um lado os artistas interagem com as causas sociais para garantir o engajamento, o inverso também acontece: quando os políticos usam figuras públicas com apelo popular para se promover. Para Pereira de Sá, essa situação instiga os artistas a se posicionarem. “Os artistas perceberam que quem não se politizar pode ser perseguido de qualquer maneira, seja pelos apoiadores políticos de direita ou de esquerda. Isso tira essas figuras da inércia”.

Diante de todos os termos e fatos, também surge uma dúvida: como a imprensa compõe a relação entre fãs e artistas nos debates on-line? A pesquisadora destaca que os espaços digitais e a grande imprensa estão cada vez mais articulados. “Os fandoms já fazem o trabalho de desmentir desinformações que são propagadas por jornais sensacionalistas. As relações de ativismo, nesse segmento, partem do rompimento das ideias preconceituosas que os gêneros musicais pop-periféricos enfrentam”.

Equipe do LabCult da UFF. Foto: Reprodução/Instagram

 

O Laboratório de Pesquisa em Música, Culturas Urbanas e Tecnologias é um projeto vinculado ao PPGCom-UFF e ao curso de Estudos de Mídia da UFF. Assim como essa pesquisa, os temas abordados pelos pesquisadores do grupo giram em torno da análise e entendimento da circulação da música e cultura pop no ambiente digital, como foco nos artistas, fandoms, audiovisualidades e redes musicais.

Simone Pereira de Sá é doutora em Comunicação e graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente é professora titular do Departamento de Estudos Culturais e de Mídia e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFF, onde coordena o LabCult. É bolsista de Produtividade do CNPq.

 

Por Letícia Souza
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